As Questões de Watchmen
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- - - de Rafael, para o na Vitrine.

O principal objetivo de Watchmen chega a ser óbvio: a desconstrução do mito do super-herói, trazendo essas lendárias figuras para o mundo real. Não exatamente para o nosso mundo, mas para uma realidade paralela semelhante, diferindo apenas pelas consequências trazidas pela existência desses heróis. Tradicionalmente, o universo dos super-homens é o ambiente de personalidades linearizáveis, onde bem e mal não se misturam. Só de olhar é possível identificar bandidos e mocinhos. Na roupagem realista que Watchmen propõe, não há espaço para tais maniqueismos. Temos personagens humanas, nem sempre boas ou más, e sim tridimensionais. A primeira questão, então, que esse tipo de contexto propõe é:
Em um mundo como o nosso, qual seria o verdadeiro papel de um super-herói? Como lutar contra o mal quando ele não está mais tão convenientemente caracterizado por uma figura central, arqui-inimiga?
Os diferentes mascarados têm particulares respostas para essa questão. Mas não vou começar por essa discussão. Ainda estamos começando.
Antes de mais nada, é preciso se perguntar:
Por que no século XX* precisamos de super-heróis?
Bom, Super Homem, Capitão América e companhia nasceram do interesse político de vencer ideologicamente os soviéticos. Inspirados, então, no sonho americano de Justiça e Liberdade, divulgados por esses metalinguísticos personagens, surgem os “watchmen” (vigilantes), os combatentes do mal transportados para um mundo menos preto-e-branco, prontos para enfrentar o mal que existe dentro da própria América. A compreensão fundamental aqui é a de que nem o sistema político apregoado como o correto, a Democracia e as Leis, nem a Religião e nem o setor privado, e nem nada foi capaz de vencer misérias, desigualdades, preconceitos e violência. A sociedade da forma como ela foi concebida é simplesmente ineficiente no combate aos problemas sociais reais que maltratam principalmente, mas não só, as minorias (minorias que, em números, não têm nada de minoria). Por isso a crença em seres superiores designados para resolver os problemas sociais que os poderosos (preocupados com políticas publicitárias) não se mobilizam para tratar parece plausível em uma realidade caótica. Por isso a necessidade dos “watchmen”.
Mas, se por um lado, os heróis parecem necessários, por outro, seria absurdo e incoerente designar pessoas, seres humanos, para esse tipo de serviço. E o que aconteceria se pessoas comuns se dessem a esse trabalho? A resposta de Moore para essa questão é o próprio cenário de Watchmen, realista por necessidade de ser coerente. E o é. A genialidade do autor é justamente conseguir apresentar esse cenário como uma realidade plausível. Para os combatentes, motivos sobram: uns lutam por suas ideologias, outros são patrocinados por empresas, outros buscam fama e prestígio, a maioria apenas não bate muito bem da cabeça. Mas, que benefícios reais esses heróis humanos poderiam trazer à sociedade? Mesmo que eles tenham notáveis habilidades marciais, mesmo que eles tenham a tecnologia ao seu lado... Voltando ao início, como combater o mal?
Os vigilantes e suas batalhas pessoais

O que incomoda em Rorschach não é o fato de ele não ser o herói tradicional, mas justamente o fato de ele ser exatamente o que entendemos por herói. É claro que elementos compositivos importantes – sua aparência e seu total desprezo pela raça humana – fazem com que antipatias nasçam mais facilmente. Mas o importante é perceber que mesmo um Rorschach atraente e cheio de amor pra dar ainda cometeria erros terríveis, porque ele age centrado em suas próprias verdades e as leva adiante custe o que custar. Ninguém é dono da verdade, e um herói que faça sua própria moral valer, a despeito de outros, não passa de um intolerante e egocêntrico. Essa intolerância, no entanto, é a essência do herói, e a personalidade de Rorschach é uma peça fundamental no quebra-cabeça da trama.

E o que dizer do Comediante? O Comediante é um pacifista do plano psicológico. Ele, ao contrário de Rorschach e da maioria dos outros vigilantes, aceita o mal como parte integrante da natureza humana. Por isso, ele prefere não lutar, porque lutar contra o mal é lutar contra si mesmo. Ao contrário, ele se junta ao inimigo, fazendo da crueldade motivo de piada. Ele se permite atrocidades para se sentir em paz com sua natureza humana. O Comediante é o perfeito anti-herói, que acha uma piada a luta dos outros vigilantes.
Impactos na Sociedade

Do ponto de vista social, a existência dos Homens Minuto (a primeira geração de vigilantes) é uma anomalia política sem tamanho. São pessoas que agem às escondidas, acima da lei e desrespeitando todas as conquistas democráticas históricas, ridicularizando o governo e a segurança nacional. No entanto, contando com o apoio da sociedade, são rapidamente incorporados ao sistema econômico, tornando-se celebridades e armas poderosas de publicidade. Espectral e Dollar Bill são perfeitos exemplos dessa nova tendência.
Não seria preciso nenhum grande evento para deixar claro que esses heróis eram, na verdade, grandes equívocos coletivos, motivados por ideologias artificiais. Logo começam os abusos e a dificuldade de identificar os homens por trás das máscaras cria uma casta social de irresponsabilizáveis; tiranos e nazistas fora da política. Mesmo que a maioria deles não agisse com crueldade, apenas a arbitrariedade que tinham poder para exercer já era suficiente para ameaçar a ordem social.
Super Poderes

A discussão precedente ganha nova dimensão com o surgimento do Dr. Manhattan. A pergunta agora é: e se um super-herói com super poderes realmente existisse? Alan Moore responde com outra pergunta: e se essa espécie de Super Homem fosse, da mesma forma como foram os Homens Minuto, incorporado pelo sistema político-econômico? Uma criatura super poderosa poderia, em teoria, funcionar como arma em uma guerra política, mas não na guerra contra o mal, porque, nas palavras de Jon, ela não possuiria o poder de “alterar a natureza humana”. É a visão do Comediante voltando à tona. A guerra contra o mal é uma guerra contra os homens. Apenas a humanidade poderia se salvar de si mesma.
É por isso que, na HQ, quem salva a Terra de uma 3ª Guerra Mundial é um herói humano, e não o Dr. Manhattan.
Além disso, fica clara na HQ a visão de Moore de que, quanto mais poder a humanidade detém, mais iminentes tornam-se os conflitos. Foi a existência do Dr. Manhattan que deixou a Terra à beira da guerra. O medo que Jon causava nos soviéticos era tamanho que não descartava-se a possibilidade de um ataque suicida. Fica no ar mais uma pergunta:
Que poderes um super-herói precisaria ter para garantir a paz? Mesmo no plano metafísico, esse perfil de herói existiria?
Rorschach versus Ozymandias
Todas essas perguntas não ficam sem solução. Ozymandias, com seu plano megalomaníaco e por métodos questionáveis consegue unir duas nações inimigas e acabar com a ameaça da guerra. Essa solução, no entanto, está longe de ser conclusiva. Personagens morrem, mas não ideologias. A breve mas suficiente discussão entre Ozymandias e Rorschach no final da trama é ainda repleta de quesões a serem pensadas. A forma como Ozymandias conduz os fatos baseia-se numa visão maquiavélica que não raro culminou em grandes injustiças históricas. Em verdade, apesar da Terra ter sido momentaneamente “salva”, não há garantias de que o mundo será um lugar melhor dali para frente. Aliás, não há sequer garantia de que ela vá durar mais dez anos. Terão, então, valido a pena todas as mentiras, todas as mortes, todas as arbitrariedades? Não estará a visão de Ozymandias apenas propagando os mesmos erros e preconceitos que deram origens à desigualdade e à guerra? O feito é notável, mas não haveria outra forma? A pergunta, na verdade, é secular: os fins justificam os meios?
A visão heróica e romântica de Rorschach é terminantemente contra essa “salvação” sangrenta e mentirosa; “sem acordos”, ele diz. Mas, estaria errado o seu ponto de vista apenas por parecer utópico? Afinal, quantas vezes ao longo da história os grades impasses tentaram ser resolvidos de forma honesta? O problema político de ações como o de Ozymandias é que, quase sempre, busca-se por meios imorais alcançar interesses particulares de poderosos. O mesmo não pode ser dito de Adrian Veidt, contudo, colocando na forma de outra pergunta secular: um erro justifica outro? É uma imagem forte quando Rorschach refere-se à morte como “mais um cadáver em sua fundação”. Talvez ele esteja propondo que um mundo melhor não se construa por grandes revoluções, mas por atitudes íntegras. Os fins não podem justificar os meios, porque todo final é uma ilusão. O futuro perfeito de Veidt é uma ilusão, e o que ele fez simplesmente não está correto.
Tantas questões filosóficas e existenciais em apenas 12 capítulos é realmente um mérito à parte, e, apesar de haver falhas, tanto no filme quanto na HQ, é mais que merecido o reconhecimento de Watchmen como uma grande obra, um marco na história dos quadrinhos. Àqueles que assistiram o filme, recomendo fortemente ler também a série impressa. A ambientação é feita de forma espetacular e essas questões todas são tratadas com muito mais cuidado que na versão cinematográfica, que, apesar de ser uma excelente adaptação do enredo de Watchmen, perde em profundidade de interpretação.

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* Período da trama.
Um comentário:
Rafael, às vezes você me dá um profundo medo.
Essa análise daria uma introdução perfeita para sei lá, uma tese de quadrinhos.
Genial.
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