O novo de Woody Allen
- - - de Rafael, para o na Vitrine.

Agora são 2h36 da manhã e acabo de voltar do último filme do Woody Allen, que confesso ter ido relutante. Aos fãs do cara, não me achem um anti-allenzista. Minha única implicância com ele é o outro único filme que assisti de sua autoria: Match Point, no qual o insuportável protagonista faz do longa uma experiência nada motivadora.
Vicky Cristina Barcelona, ao contrário, tocaram-me fundo. Aqui, pretendo fugir um pouco da tradicional análise técnica – roteiro, direção, fotografia, etc –, que, passando por cima, estão bastante agradáveis em seu estilo peculiar. Recursos que só seriam vistos com naturalidade há algumas décadas aparecem vez em quando na película. Uma brincadeirinha que acaba trazendo novos ares para cenas que poderiam ter passado em branco. Por outro lado, o cuidado com a cor lembra um pouco o tratamento de produções mais atuais (ou menos antigas), como Amélie Poulain ou qualquer coisa do Almodóvar.
Prefiro seguir a uma interpretação mais “semântica”. Adianto que este post é destinado àqueles que já assistiram ao filme e pretendem discutir sua mensagem. Aos outros, prefiro que aceitem minha recomendação de não perder esta bela oportunidade de ir aos cinemas. Na volta, podemos continuar deste ponto.

Disso sou eu. Poderia dizer: disso são as pessoas em geral. Mas subtraio-me de tamanha generalização. Então, quero dizer que o filme fala de mim. De como são os meus relacionamentos e de como eu gostaria que eles fossem, principalmente. Fala que para relacionar-se é necessário sofrer, apesar de caber a mim escolher se isso é bom ou ruim, e de como administrar esta condição. Fala também de como essas decisões e, portanto, meus paradigmas e minhas atitudes, criam novos conflitos e novas inquietações. Fala que, afinal, eu e o outro somos relacionados visceralmente. Relacionar-se é o que faz de mim, eu. Por isso também, a vida traz tantas perguntas e tão poucas respostas. Fala, enfim, que todos somos diferentes; e isso diz respeito a mim.
É fácil, para tanto, notar que cada uma das personagens é componente nascida inteira do seu criador, o autor, e também daqueles “eus” que, como eu, identificaram-se com os conflitos explorados. A saber: Vicky e a necessidade de segurança; Cristina – a inconstância e a vontade de se expressar, dando sentido à própria vida; Juan Antonio – os desejos carnais; Pai de Juan – a perplexidade ante a vida; María Elena – a arte à flor da pele e o talento inato; Doug – o comportamento padrão e o peso das estruturas sociais; Judy – o medo de se frustrar. Todos repletos de dúvidas, insatisfeitos com alguma coisa, e movidos pela vontade de tomar as rédeas da própria vida.

E por que disso? Como o filme justifica seu conselho, aparentemente inofensivo mas, no fundo, subversivo e até assustador? Ora, é a incompletude do sujeito que está constantemente sendo exposta. Essa incompletude não permite ao sujeito abandonar o peso da dúvida, cujo os únicos remédios são o arriscar, quiçá o arrepender-se. Quando Cristina conta à amiga e a seu marido que, sim, vivia um relacionamento à três, amara uma mulher e estava feliz, é nítida a relação vertical entre o eu e o outro. Uma relação lacaniana, também conhecida como “o estádio do Espelho”. É a visão de que o eu se torna eu no outro. Você nasce e cresce absorvendo dos pais, amigos e estranhos as formas corretas de obter prazer e os objetos corretos de prazer, adequando para tanto sua estrutura psíquica e comportamental. Contudo, os pequenos desgostos da vida nos mostram que nem tudo o que é certo é bom e nem tudo o que é errado é ruim. Portanto, quando Vicky ouve de sua interlocutora uma versão unilateral daquela nova forma de felicidade, perfeita e satisfatória, enquanto discurso; seus pequenos monstros voltam a atormentá-la. Porque o outro é sempre quem nos vende a forma ideal de felicidade, fórmula que nunca conseguimos alcançar e portanto nos sentimos fracassados. É a velha história do jardim mais verde no vizinho, acrescida do agravante pensamento: se ela consegue e eu não, algo só pode estar errado comigo. Este conflito é levado ao extremo quando Judy, sofrendo do mesmo mal, projeta suas frustrações em Vicky, levando às últimas conseqüências a paranóia da protagonista.
Ainda assim, os diálogos informais e descontraídos, o visual bonito e clean, a trilha sonora agradável e outros aspectos técnicos conseguem manter uma invejável leveza emocional durante a película. Essa leveza é de um otimismo ímpar. Não é o otimismo vazio de uma felicidade fortuita, mas o otimismo de quem vê as questões mais profundas e angustiantes do ser e ainda assim consegue aproveitar a vida. O pai de Juan Antonio é provavelmente a personagem que carrega melhor essa mensagem. Veja, a imagem de um poeta velho que não publica seus textos por vingança contra a vida não pareceria tão saudável e sorridente senão na fotografia de Allen.

Com isto, chega a ser ácida sua visão sobre aqueles que ainda acreditam em certo e errado e preocupam-se, como Doug, em poder dar palpite sobre as escolhas que não são suas. Quando este afirma tão categoricamente que Cristina está fadada à eterna busca por felicidades fugidias, não é capaz de perceber que um certo amadurecimento de sua esposa a levava à inquietações tão semelhantes às da amiga. Outro ponto acertado na história é a participação mínima de Doug, que não chega a ser mortificado. É como se seu “lugar comum” já estivesse pré-perdoado por nós ante a massificação do comportamento.
Por fim, o filme trata do desapego aos ideais. Citando o lema de Maria Elena e Juan Antonio: “o amor só é completo quando idealizado”. Porém, completo não é feliz. É engraçado que esse seja exatamente o joguinho capsioso do filme, que nos diz o contrário: que é a idealização que nos causa sofrimento, e que o amor nunca pode ser esse jogo solto de palavras. Ao dar tratamento equivalente à Vicky e à Cristina, à razão e ao impulso, ao padrão e ao exótico, Allen valoriza a história única (e bonita) de cada personagem. Mostra-nos que não há fronteiras quando nosso objetivo é buscar a felicidade, e mostra, por outro lado, como é infrutífero pretender encontrá-la.